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O silêncio perdido

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22 de janeiro de 2011 | 0h 00

Marco Aurélio Nogueira – O Estado de S.Paulo

Às vésperas de mais um aniversário, a cidade de São Paulo pode estar ganhando um presente inesperado. Nada extraordinário ou especial, mas nem por isso menos interessante. Na regulamentação para 2011 da Inspeção Veicular Obrigatória, introduziu-se uma novidade. Agora, além da verificação da emissão de poluentes e de itens de segurança como freios, pneus e faróis, será também aferido o ruído dos motores.

Ainda não dá para comemorar. O teste medirá o ruído com o veículo parado e “segundo a percepção auditiva e a experiência do inspetor”. Não há, portanto, garantia de que tudo será devidamente ponderado e auscultado. Seja como for, é um começo.

A poluição sonora deveria entrar na pauta urbana. O ruído acompanha a marcha do progresso industrial e da concentração humana nas cidades, o que incluiu a batalha pelo silêncio na plataforma de lutas pelo avanço e pela consolidação da própria ideia de civilização. Ser civilizado seria, assim, ser urbano: polido, educado, não invasivo, discreto, silencioso, responsável, participativo. Como na origem dos tempos, aliás, quando a polis grega foi traduzida na civitas e na urbe romanas, ampliando e entrelaçando seus significados. Palavras como política, cidade, urbanidade, civilização e civismo vieram daí. Cidadão tornou-se o indivíduo com direitos e deveres de cidade, isto é, referidos não somente ao espaço físico, mas também aos espaços públicos, compartilhados em comum com todos os habitantes.

O índice de barulho reflete o padrão de cidadania de uma comunidade e o silêncio funciona como requisito para uma vida mais justa, igualitária e de melhor qualidade, que são precisamente as grandes promessas da civilização. Uma República de cidadãos não cria barulhos superlativos, desnecessários, por sobre os ruídos inevitáveis.

As metrópoles do mundo contemporâneo vivem à procura de silêncio. As mais antigas, sem tantos desníveis sociais e impregnadas de cultura pública, conseguem preservar padrões consistentes de convívio e privacidade. Nelas são muitos os nichos onde há condições sonoras adequadas para a conversa e o repouso. Outras, como São Paulo, que além de novas são também um compósito de formas arcaicas e ultramodernas de vida turbinadas pela miséria e pelo crescimento selvagem, vivem oprimidas pelo ruído, que se converte em fator de risco para a saúde e a convivência.

Não há paulistano que não se incomode com ele. Muitos sofrem sem saber, sem se dar conta de que o barulho invade silenciosamente o sistema nervoso de cada um, desmonta equilíbrios, afeta a audição e o bom humor, perturba o sono e trava a comunicação. Alguns reagem, ora com indignação, ora com violência, quase sempre com a sensação amargurada de impotência. Nada parece deter o ruído crescente.

Barulho intenso, sistemático e abusivo é um sintoma de ausência de regulamentação. Em São Paulo, o poder público não só é omisso na fiscalização dos barulhentos, como dá maus exemplos o tempo todo. O caso dos ônibus paulistanos é emblemático: velhos, sujos, sucateados, são poderosos agentes de poluição sonora. Roncam e guincham pelas ruas da cidade como verdadeiros arautos do apocalipse. O poder público, além do mais, assiste passivamente ao passeio dos caminhões pesados. Só consegue impor restrições inócuas, muitas vezes não respeitadas. Para piorar, não é criativo nem ousado em termos de política de transportes.

À falta de regulamentação soma-se a falta de educação de muitos cidadãos. Ninguém, a rigor, se importa muito com o sossego alheio. Excitados pelo frenesi urbano, os motoristas transformam seus carros e motos em armas contra a vida e o silêncio. Exibem-se uns para os outros o tempo todo, em alto e bom som, como se fossem os únicos donos da cidade. Em casa, exibem sem pudor a potência acústica dos eletrodomésticos. O volume alto é regra na cidade. Os moradores parecem surdos ao problema.

Inexistem campanhas específicas ou mobilizações dedicadas ao assunto. Também não se conhece nenhuma vitória conseguida contra a poluição sonora. O máximo que se obteve, até agora, foi o crescimento das empresas fornecedoras de portas e janelas acústicas, ou seja, o aparecimento de novos negócios e de alguns recursos defensivos, que não atacam a raiz do problema.

É em condições razoáveis de silêncio que se pode ter vida inteligente. Ler e escrever, aprender e ensinar, dialogar e refletir. É no silêncio que se pode descansar. Nada que ver com a paz dos cemitérios, porém. A cidade civilizada reclama o silêncio democrático, no qual tem lugar o ruído das massas e das festas populares, do frenesi da política e das vibrações esportivas. A cidade brasileira, em particular, é alegre, comunicativa e espontânea. Não pode ser cerceada em seu caráter. Que continuemos a ser irreverentes, festeiros, improvisadores, amantes da música, da dança e da batucada, sabotadores criativos das regras tirânicas ou artificiais.

O motorista que buzina alucinado, o ônibus que trafega com o escapamento estourado, o motoqueiro que extrai o máximo de sua moto, a construtora que bate estacas em horários obscenos e o adolescente bem-nascido que barbariza seu prédio não têm relação alguma com o “caráter nacional”. Não são exemplos de espontaneidade e alegria, mas de má-educação. Expressam uma coletividade que perdeu consciência de si mesma, que se está tornando indiferente e pulverizada em ilhas de individualismo possessivo. São deformações e caricaturas perversas de uma cultura fundada na informalidade excessiva, produtos da modernização desregrada, excludente e predadora em que vivemos.

O ruído que vem com o progresso não é uma fatalidade, pode ser domado e civilizado. São Paulo tem potência para tanto. Precisa, porém, traduzir essa potência, convertê-la em cidadania ativa, o único fator que pode efetivamente atuar como força propulsora do silêncio democrático, inerente à cidade republicana.

PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP. EMAIL: [email protected]

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